segunda-feira, 11 de junho de 2012

Utile et Dulce


A inscrição em latim, gravada na mente dos que buscam uma útil e agradável, mobilizadora e prazerosa parceria, talvez tenha sido a ultima expressão que vague nas cabeças dos pré-candidatos a prefeitura de Macapá que neste interim parece mais o Sertão do Seridó que é uma vastidão de terra que fica encravada no ponto mais distante do Estado do Rio grande do Norte, lá, depois de onde acaba a sorte e começa o sofrimento.

Lá o sertanejo é amoroso, sonhador, forte e persistente. Mais ou menos como o amapaense, mas pode ter um ou outro que destoa dos outros, mas são só alguns. Só não se é feliz. Afinal viver sob uma inconstante parece ser a sina de ambos os povos, de lá e cá. Essa semelhança de Macapá do Seridó, digo, com Seridó me faz lembrar as memorias do sertão de padre Ciço e Lampião, mais ou menos isso.

Corria o ano de 1938. “Perigo” era o nome do cachorro de estimação de Severino. Chamar de cachorro de estimação talvez seja consideração demais para com o bicho, mais justo seria dizer cão de serventia, pois era um cachorro para todas as lides, desde tanger o gado (quando havia gado para tanger), vigiar a casa ou aquilo que se podia chamar de casa: uma velha tapera feita a sopapo, na beira da estrada de um lugar onde, quando chovia, formava-se um açude. Perigo também servia para brincar com as crianças, além de ajudar na caça. Aliás, era bom de caça. Da Codorna a Perdiz, passando pelo Gavião e pela Saracura, Gambá e o que mais fosse bom para comer naqueles tempos de seca inclemente. Realmente Perigo personifica quem apoia e ainda acredita no apoiado.

Severino era um homem do sertão, pele curtida no sol do Seridó brasileiro, olhar doce e coração duro. Muito mais pela intempérie que pela natureza, Severino aprendeu a ser frio, lógico e pertinaz. Não era malvado, era razoável. Para sobreviver naqueles tempos, tinha que ter fibra e coragem e ser bom sem ser bobo, ser sabido sem ter letra. Era assim no sertão, onde um homem morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome antes de ser homem, como já dizia João Cabral de Melo Neto, de Morte e Vida Severina. João mais me lembra o apoiado, que estende a mão da ajuda, mas que na hora da partilha do pão, finge que não há mais pão.

Mas em 38 a seca foi braba. Primeiro, migraram os mais afoitos, depois os menos pacientes, depois os outros também se foram. Ficaram os teimosos. Severino era um destes. Com seu cachorro Perigo, Severino disputou com o Carcará cada broto que nascia, cada bicho que voava; cada presa que corria. Saiam para caçar, toda tardinha, até que foram cada dia mais longe, até as barras da Serra do Navio.

Muitos bichos foram caçados pela espingarda certeira de Severino, graças ao faro infalível do Perigo, que desentocava o bicho, estaqueava e chamava o dono para atirar. Era tiro e queda. No fim do dia, para voltar para o Seridó, Perigo rondava Severino fazendo festa, latindo e pedindo agrado. Severino estava orgulhoso: ninguém havia matado tanta caça quanto ele. E Perigo ali, enchendo a paciência, atrasando a viagem. “Passa cachorro!”

Chegado em casa, ou aquilo que se podia chamar de casa, Perigo foi para debaixo do arbusto que resistia à seca terrível, dormiu feito criança, acordou um pouquinho antes da noite chegar, faminto e faceiro. Severino estava limpando os bichos e olhando para o horizonte, vendo o sol se por atrás da barra. Perigo sentiu-se no direito de fazer uma “boquinha”, comeu um bicho, e dos limpinhos, prontos para salgar. Severino enlouqueceu, pegou a espingarda e atirou certeiro. Matou o Perigo, cão vira-lata, ladrão e vadio. Sem serventia.

Severino, depois disto, comeu a caça e refestelou-se. Muito depois soube-se que ele também perdera a teimosia e era agora mais um retirante fugindo da seca. Sentia saudades do Sertão do Seridó, de Perigo nem se lembrava mais. Enfim é o que vem por ai, uma ingratidão braba!


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