Como um homem consumido pela culpa da morte cruel a que entregou um homem justo consegue conviver com a culpa que não se atenuou com a passagem dos anos. Pôncio Pilatos escreve as suas memórias. Sabe que o tempo é escasso. Vê-o no rosto de Cláudia. Mas sabe também que é essa a sua missão. Já, Cláudia, sua esposa, sabe coisas que mais ninguém vê. Tem o dom da premonição. E sabe, por isso, que tem também um destino a cumprir. Cruzam-se, pois, memórias de um passado, de vidas que se ligaram ante a figura do Nazareno, de sombras e de memórias que prevaleceram, em um império de intrigas e de perseguidos, onde vive, apesar de tudo, uma mensagem de esperança.
Se a escrita é invulgar, também a estrutura da narrativa o é. Não há uma linha temporal definida desde o início, oscilando entre diferentes momentos na história ao ritmo da memória e da emoção. De Pôncio vemos a sua luta com a narrativa que tem de escrever, mas também as suas memórias da condenação do Nazareno, a sua intensa ligação a Cláudia e, por fim, o caminho dos seus últimos dias. De Cláudia, por sua vez, uma outra visão da sua ligação ao marido, mas também o sentido da sua missão, o seu caminho entre os seguidores do Nazareno, os olhos com que contempla a perseguição e a morte; sabendo de antemão que o que virá tem de suceder. E há ainda uma outra voz que se cruza com a dos dois protagonistas, a de um narrador que ora se distancia, nas referências a um futuro distante, ora se aproxima, quase tocando a mente daqueles cuja história observa.
Trata-se, pois, de um livro que, apesar de relativamente curto, se revela como surpreendentemente complexo. Tanto pela escrita, invulgar, mas de uma beleza impressionante, mas pela forma profunda e emotiva como a autora constrói a narrativa. Muito bom.
Um romance poético, escrito numa linguagem bastante lírica, mas, reconheço, não é fácil de ler. Exige muita concentração do leitor e conhecimentos da vida de Cristo, como nos é contada nos Evangelhos oficiais, e também dos fatos ocorridos no Império Romano no tempo de Nero. Digo isto, porque a autora divaga sobre estes fatos, no pressuposto de que não são novidade para quem lê. Diria, pois, que estamos mais perante uma meditação, uma reflexão ou até uma oração, do que um romance. Na verdade, o que ressalta neste livro é a tentativa de reabilitar a figura de Pilatos, de forma a reconciliar o seu gesto com a sua consciência, para morrer em paz.
Achei-o um livro algo difícil, mas interessante e inovador, pois é um tipo de romance histórico diferente daquilo a que estamos habituados, a forma de redação do texto, no seguimento da moda inaugurada por Saramago e seguida por outros, como Valter Hugo Mãe (este já arrependido) de fugir aos cânones clássicos de pontuação, maiúsculas e construção das frases.
Neste caso, dou um desconto, porque a si próprio o livro se intitula de "poético" e em poesia tudo se desculpa. Mas porque será que este gênero não me atrai? Cada um "come do que gosta" e este livro vai certamente, agradar a muita gente.
Paula de Sousa Lima uma lisboeta, filha de açorianos, e vive nos Açores desde os seis anos, com uma passagem por Moçambique. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Literatura Portuguesa. É professora do Ensino Secundário, tendo lecionado no Ensino Superior, como convidada, durante mais de uma década. No âmbito da investigação acadêmica, publicou artigos sobre literatura, língua e didática em revistas diversas. Tem desde há vários anos, uma colaboração assídua em jornais, com crônicas e artigos sobre literatura e língua. Atualmente mantém um suplemento quinzenal no Açoriano Oriental. Dentre suas obras também impecáveis no charme luso três romances se destacam: Crônica dos Senhores do Lenho, Variações em Dor Maior e Tempo Adiado.
Vale a pena conferir.
Os últimos dias de Pôncio Pilatos
Paula de Sousa Lima
Editora Casa das Letras
244 Páginas
€ 14,90 (Ainda não editado no Brasil)