terça-feira, 16 de junho de 2015

Deuses, astronautas e a miopia telescópica

Nas antigas gerações da história do humana, a ligação entre astronomia e crenças religiosas costumava ser harmoniosa. Constelações com frequência eram apontadas como imagens de figuras míticas desde a Grécia antiga até o Brasil pré-cabralino e histórias como a da Estrela de Belém, que guiou os reis magos ao menino Jesus são comuns em narrativas sagradas. Bastou que surgisse uma ciência dos céus mais ambiciosa, porém, para conflitos virem à tona. Galileu Galilei foi censurado no século 17 por defender que a Terra orbita o Sol, e só em 1992 o Vaticano o perdoou oficialmente, sou católico, mas também sou cientista solidário a Galileu. Atualmente, cristãos convivem em harmonia com os astrônomos, mas isso não impede que outras religiões venham a se sentir desrespeitadas pelos estudiosos do Universo.

Quem está enfrentando os astrônomos agora, porém, não é a Igreja Católica, e sim praticantes de uma religião minoritária num arquipélago remoto do Pacífico. Durante quatro décadas, cientistas usaram Mauna Kea, uma montanha na Ilha Grande do Havaí considerada sagrada, para construir telescópios, indo contra pedidos de líderes espirituais. Hoje já existem 12 observatórios no local, mas um projeto que ganhou aval agora o gigante TMT (Telescópio de Trinta Metros), talvez seja o último a se instalar ali. Após protestos com nativos fechando estradas em Mauna Kea e em Hononulu, capital estadual, o governo determinou que é hora de começar a desativar alguns equipamentos.

Mauna Kea, um vulcão extinto que forma um pico de 4.200 metros de altitude, é considerado pela tradição havaiana uma figura mítica em si. É ele o primeiro dos filhos de Wakea (o pai Sol) com Papa (a mãe-Terra): é onde o arquipélago do Havaí começou a nascer. O local é também considerado o lar de Poliahu, deusa da neve, e abriga em sua encosta o pequeno lago Waiau, um centro de batismo onde são depositados cordões umbilicais. Por seu caráter sagrado, a montanha teve vias de acesso controladas ao longo dos séculos, e apenas líderes tribais de alto escalão podiam visitar o pico.

Foi assim até 1960, quando o astrônomo Gerard Kuiper chegou perto do pico e constatou seu potencial para observação do céu. Algumas cidades da ilha tinham acabado de ser devastadas por um tsunami, e os comerciantes locais acharam que seria uma boa ideia atrair grandes projetos de astronomia para o arquipélago como forma de ajudar a reavivar a economia local. Construiu-se uma estrada de acesso à montanha e, em 1968, o terreno estadual que abriga o pico de Mauna Kea foi arrendado para a Universidade do Havaí num contrato de 65 anos. Em 1970, implantou-se o primeiro observatório lá, operando um telescópio de 2,2 metros de diâmetro. E desde então o lugar virou uma Meca da astronomia, com a universidade sendo procurada pelos projetos mais ambiciosos do campo.

Quem sobe em Mauna Kea para assistir a um pôr do Sol logo percebe por que o local é tão especial tanto para a religião quanto para a ciência. O pico, que fica quase permanentemente acima das nuvens, oferece uma visão espetacular da ilha e de seus outros vulcões. É o tipo de paisagem que inspira sentimento de transcendência e respeito pela natureza. E quando se olha para cima, o céu que fica totalmente limpo em 325 noites por ano é considerado por astrônomos um presente dos deuses.

Durante 20 anos de funcionamento, o Observatório Keck, o maior de Mauna Kea, tem tido um papel importante em temas de ponta da astronomia, particularmente no estudo de planetas fora do Sistema Solar. O TMT terá uma escala a ponto de ajudar a analisar a composição atmosférica desses planetas, e promete ser uma ferramenta útil no estudo da misteriosa matéria escura, que compõe 85% da massa do Universo. Mas mesmo os outros observatórios da montanha têm produzido observações importantes, e será difícil convencer astrônomos a abrir mão de continuar observando os céus a partir de lá. Só que alguém vai ter de sair.

Para encerrar os protestos contra os telescópios, o governador do Havaí, David Ige, ajudou a articular um acordo de paz entre astrônomos e líderes espirituais. Segundo os termos anunciados na semana passada, a instalação do TMT fica garantida, mas pelo menos quatro telescópios de Mauna Kea deverão ser desativados até a inauguração do novo projeto, estimada para 2022. Com exceção do CSO (Caltech Submillimeter Observatory), que já tinha saída programada para 2016, ninguém se voluntariou. A negociação sobre quem vai para o sacrifício, pelo visto, não será fácil.

Entre outros projetos que estão lá se destacam o gigante Subaru, do Japão, o Gemini Norte, consórcio que tem participação do Brasil, e o CFHT, do Canadá e da França. É provável que os expulsos sejam os menores, como o telescópio de 2,2 da Universidade do Havaí, mas não está claro o que deverá acontecer depois. Além disso, nenhuma nova área de construção será concedida no local, o que torna o deserto do Atacama, no Chile, o único ponto do planeta com qualidade equiparável para instalar novos telescópios do porte do TMT.

Alguns astrônomos ficaram frustrados com a decisão sobre Mauna Kea, mas é difícil qualificar a demanda dos grupos religiosos havaianos como uma perseguição inquisitória à ciência. Ninguém ali está tentando impor uma crença obrigatória nem ameaçando mandar para a fogueira os que não professam a mitologia havaiana. Trata-se da reivindicação de um território que pertencia a povos tradicionais. O caráter espiritual de Mauna Kea sobreviveu às invasões francesa e inglesa no século 19, e é irônico que justamente agora, como unidade de conservação estadual, a montanha esteja cheia de gente.


O acordo anunciado pelo governo, além de estabelecer um calendário para a desativação de telescópios, exige que os visitantes da montanha, cientistas ou turistas, passem por treinamento cultural. Além de fazer um minicurso para aprender como lidar com o ar rarefeito e a radiação ultravioleta do local, quem quiser subir a montanha terá de aprender agora a se comportar com o devido respeito a Wakea, Poliahu e outras divindades locais. 
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