Nas
antigas gerações da história do humana, a ligação entre astronomia e crenças
religiosas costumava ser harmoniosa. Constelações com frequência eram apontadas
como imagens de figuras míticas desde a Grécia antiga até o Brasil
pré-cabralino e histórias como a da Estrela de Belém, que guiou os reis magos
ao menino Jesus são comuns em narrativas sagradas. Bastou que surgisse uma
ciência dos céus mais ambiciosa, porém, para conflitos virem à tona. Galileu
Galilei foi censurado no século 17 por defender que a Terra orbita o Sol, e só
em 1992 o Vaticano o perdoou oficialmente, sou católico, mas também sou cientista
solidário a Galileu. Atualmente, cristãos convivem em harmonia com os
astrônomos, mas isso não impede que outras religiões venham a se sentir
desrespeitadas pelos estudiosos do Universo.
Quem está
enfrentando os astrônomos agora, porém, não é a Igreja Católica, e sim
praticantes de uma religião minoritária num arquipélago remoto do Pacífico.
Durante quatro décadas, cientistas usaram Mauna Kea, uma montanha na Ilha
Grande do Havaí considerada sagrada, para construir telescópios, indo contra
pedidos de líderes espirituais. Hoje já existem 12 observatórios no local, mas
um projeto que ganhou aval agora o gigante TMT (Telescópio de Trinta Metros),
talvez seja o último a se instalar ali. Após protestos com nativos fechando
estradas em Mauna Kea e em Hononulu, capital estadual, o governo determinou que
é hora de começar a desativar alguns equipamentos.
Mauna
Kea, um vulcão extinto que forma um pico de 4.200 metros de altitude, é
considerado pela tradição havaiana uma figura mítica em si. É ele o primeiro
dos filhos de Wakea (o pai Sol) com Papa (a mãe-Terra): é onde o arquipélago do
Havaí começou a nascer. O local é também considerado o lar de Poliahu, deusa da
neve, e abriga em sua encosta o pequeno lago Waiau, um centro de batismo onde
são depositados cordões umbilicais. Por seu caráter sagrado, a montanha teve
vias de acesso controladas ao longo dos séculos, e apenas líderes tribais de
alto escalão podiam visitar o pico.
Foi assim
até 1960, quando o astrônomo Gerard Kuiper chegou perto do pico e constatou seu
potencial para observação do céu. Algumas cidades da ilha tinham acabado de ser
devastadas por um tsunami, e os comerciantes locais acharam que seria uma boa
ideia atrair grandes projetos de astronomia para o arquipélago como forma de
ajudar a reavivar a economia local. Construiu-se uma estrada de acesso à
montanha e, em 1968, o terreno estadual que abriga o pico de Mauna Kea foi
arrendado para a Universidade do Havaí num contrato de 65 anos. Em 1970, implantou-se
o primeiro observatório lá, operando um telescópio de 2,2 metros de diâmetro. E
desde então o lugar virou uma Meca da astronomia, com a universidade sendo
procurada pelos projetos mais ambiciosos do campo.
Quem sobe
em Mauna Kea para assistir a um pôr do Sol logo percebe por que o local é tão
especial tanto para a religião quanto para a ciência. O pico, que fica quase
permanentemente acima das nuvens, oferece uma visão espetacular da ilha e de
seus outros vulcões. É o tipo de paisagem que inspira sentimento de
transcendência e respeito pela natureza. E quando se olha para cima, o céu que
fica totalmente limpo em 325 noites por ano é considerado por astrônomos um
presente dos deuses.
Durante
20 anos de funcionamento, o Observatório Keck, o maior de Mauna Kea, tem tido
um papel importante em temas de ponta da astronomia, particularmente no estudo
de planetas fora do Sistema Solar. O TMT terá uma escala a ponto de ajudar a
analisar a composição atmosférica desses planetas, e promete ser uma ferramenta
útil no estudo da misteriosa matéria escura, que compõe 85% da massa do
Universo. Mas mesmo os outros observatórios da montanha têm produzido
observações importantes, e será difícil convencer astrônomos a abrir mão de
continuar observando os céus a partir de lá. Só que alguém vai ter de sair.
Para
encerrar os protestos contra os telescópios, o governador do Havaí, David Ige,
ajudou a articular um acordo de paz entre astrônomos e líderes espirituais.
Segundo os termos anunciados na semana passada, a instalação do TMT fica
garantida, mas pelo menos quatro telescópios de Mauna Kea deverão ser
desativados até a inauguração do novo projeto, estimada para 2022. Com exceção
do CSO (Caltech Submillimeter Observatory), que já tinha saída programada para
2016, ninguém se voluntariou. A negociação sobre quem vai para o sacrifício,
pelo visto, não será fácil.
Entre
outros projetos que estão lá se destacam o gigante Subaru, do Japão, o Gemini
Norte, consórcio que tem participação do Brasil, e o CFHT, do Canadá e da
França. É provável que os expulsos sejam os menores, como o telescópio de 2,2
da Universidade do Havaí, mas não está claro o que deverá acontecer depois.
Além disso, nenhuma nova área de construção será concedida no local, o que
torna o deserto do Atacama, no Chile, o único ponto do planeta com qualidade
equiparável para instalar novos telescópios do porte do TMT.
Alguns
astrônomos ficaram frustrados com a decisão sobre Mauna Kea, mas é difícil
qualificar a demanda dos grupos religiosos havaianos como uma perseguição
inquisitória à ciência. Ninguém ali está tentando impor uma crença obrigatória
nem ameaçando mandar para a fogueira os que não professam a mitologia havaiana.
Trata-se da reivindicação de um território que pertencia a povos tradicionais.
O caráter espiritual de Mauna Kea sobreviveu às invasões francesa e inglesa no
século 19, e é irônico que justamente agora, como unidade de conservação
estadual, a montanha esteja cheia de gente.
O acordo
anunciado pelo governo, além de estabelecer um calendário para a desativação de
telescópios, exige que os visitantes da montanha, cientistas ou turistas,
passem por treinamento cultural. Além de fazer um minicurso para aprender como
lidar com o ar rarefeito e a radiação ultravioleta do local, quem quiser subir
a montanha terá de aprender agora a se comportar com o devido respeito a Wakea,
Poliahu e outras divindades locais.