Conheci Zé das Palmas há uns ‘trocentos’ anos. Vivemos a mesma infância pobre e sem rumo. Mas partimos em anos e momentos diferentes para caminhos que se cruzavam com intermitência.
Em suas efemérides, Zé das Palmas teve uma vida agitada, ganhou muito dinheiro, mas dele nunca tirou proveito à usura. E sempre se preocupou com as vincendas mesmo que já estivessem quites, afinal elas sempre estariam por vencer a mais uma vez.
Um dia ele saiu afora, conheceu o Brasil e o mundo, de pés descalços. Este mundo de Deus. E ele quis ser deus, criou seu próprio mundo, de factóides e adereços dos mais diáfanos, e um dia esse mundo ruiu. E como o deus de pés de barro que era; Zé das Palmas perdeu seu mundo.
Beijou a mão de cardeais e bispos, olhou o Papa na sacada e viveu quatro sede vacante, observou reis e rainhas passeando de coche a pompa e circunstância. Sentou-se à mesa com governadores e gente influente estava ao seu lado. Tinha grandes afetuosidades do empresariado por onde passou. Mas nunca foi um deles.
Tinha o poder para fazer fazerem, mas não o de fazer seu.
Teve poucos amigos, de se contar nos dedos, não porque fosse desconfiado, mas por que não os tinha mesmo. Sua língua era ferina demais para conquistar afeto fraternal. Irmãos; também os teve, mas os perdeu de vista neste mundo grande demais.
Mulheres; teve poucas, mas a apenas três devotou sinceridade enquanto as amou (ou acho que nunca deixou de amá-las), mesmo que o contrário não lhe tenha sido recíproco para algumas delas. Sem exceção, todas o levaram a alguma forma de ruína de maneira indelével às suas finanças, moral ou pessoal.
Nunca me lembro de o Zé das Palmas ter me dito que adulterara em seus casamentos. Poder até que podia se quisesse. Era um sujeito galante quando queria sê-lo. Miscigenava os temperamentos entre o garboso amante e o alcaide algoz em frações de segundos.
Passados alguns anos, após sucessivas desgraças morais e relacionais, perdeu tudo. Não ficou com mais que uma mala, mala essa que mais parecia um catadióptrico do que uma mala em si. No mais tudo ficou para trás, sem importância, sem interesse, apenas ficou para trás.
Os poucos amigos que tinha. Se foram também e o esqueceram tão rápido quanto o diabo esfrega um olho. As amizades efêmeras de Zé das Palmas não tiveram raízes fortes nem profundas o bastante para se arraigar ao tempo.
Zé das Palmas não teve família vivente ao seu lado, pais que o amassem com veio de proximidade e não de incômodo. Os poucos familiares que dele se lembram, lembram tão pouco que mal dá para abrir uma linha. Acho que mais o conheci do que os outros. Seu gênio de cão hidrófobo oscilava a ter afronta a juízes togados e homens armados de foice e berro. Não se entregava, lutava sem pouso até que a última verborragia vomitada como uma praga vencedora fosse de sua garganta a sair.
Pragmático, sei que teve filhos lá pelas bandas por onde morou. Alguns vivos, alguns mortos, mas ao se dar o fato de que nem um deles se lembrou ou procurou Zé das Palmas, deve ter sido pela ciência de morto estar, pelo esquecimento das genitoras ou pelo ódio transmitido à prole pelas mesmas. Mas que diferença isso faz agora?
Tisnado, cansado, achincalhado, sovado, humilhado e despido de qualquer dignidade possível a um ser humano. Calçando um chinelinho quase havaianas. Com um calção bem surrado e uma camisa de algodão, com resquícios de “Vote Almir 45”. Zé das Palmas adentrou a recepção do Hospital da Ordem Terceira com uma cédula de identidade nas mãos.
Sozinho e sem dono, seu peito doía. Ficou algumas horas sentado em uma cadeira de rodas, tomando analgésico endovenoso, e balbuciando nomes de gente que o defenestrou em um passado já esquecido para uma tímida auxiliar de enfermagem que o atendia.
Ao ver o médico, a auxiliar perguntou o que fazer e o médico disse-lhe secamente: Nada! Zé das Palmas estava no final, apenas paliativos lhe seriam um consolo. Deu-lhe um cigarro de filtro branco. Dentre os incontáveis que já havia tragado às ventas, mais um não lhe mataria mais do que isso. Deu uma última tragada faminta.
Zé das Palmas se entregou, berrou o nome de sua última esposa, pediu perdão a auxiliar de enfermagem que nada entendia daquele balbucio sem propósito: “Menti para você, não quero morrer com essa bala no peito! Perdão!”
Urrou; como um bicho balado, urrou de dor, de sede, de fome, mas não pediu água nem alimento. Seus bálsamos eram outros incomutáveis. Lembrou-se de Santo Antão das Almas, lá nas brenhas do Centro-oeste de onde saíra. Urrou novamente, pediu pela filha. Atirou-se para frente, se seu peito fosse um canhão, naquele momento teria disparado seu coração.*
Mas não o fez. O projétil no seu peito saiu pela culatra e de tanto desgosto, se esfacelou dentro do tambor toráxico. De todas as mazelas que se podia lembrar, recordou de todos os rostos e nomes de todos os que passaram por sua vida. Talvez como último grande alento para si, regozijou por ainda lembrar-se de todos. Viu seu filme passar...
Não rezou nem fez as pazes com Deus; subjugado pelas tantas orações consideradas extraviadas no rumo do céu, afastou-se Dele e nunca mais pronunciou Seu nome. Postergou uma longa cruzada de idas e vindas no rumo do paraíso.
De súbito, uma luz se acendeu. E assim como qualquer ser orgânico, seja ele animal ou vegetal, busca a luz nem que seja um mero fio da luminosidade. Zé das Palmas foi até ela. Já não sentia mais dor, o cansaço se fora, seu corpo sujo e pobre jazia na cadeira de rodas.
Lembro-me que em seu velório, além de mim tinham mais umas seis pessoas, talvez o número certo para segurar as alças do humilde caixão de Eucatex, providenciado pela prefeitura aos indigentes da cidade através do serviço social funerário. Mas só haviam quatro alças. Mesmo assim dois seguraram o ataúde de papelão pelo meio, para que sua fragilidade não se mostrasse antes do sepultamento.
Das viúvas não se ouviu nem se viu nenhum carpir, nem quando o caixão desceu os sete palmos do cemitério de São Jorge. Afinal Zé das Palmas só foi aplaudido enquanto vida tinha e batia palmas para si mesmo.
Vai com Deus Zé!
JOSÉ C. PALMAS S. ALVES
15.11.1966 – 14.07.2010