O "poder de polícia", a sua
adequada extensão, os efeitos esperados e indesejáveis de seu emprego, assim
como os expedientes internos e externos voltados para a implantação de um
controle eficaz e transparente, têm constituído um dos pontos centrais das
reflexões acadêmicas internacionais sobre os meios de força comedida. Têm-se
apresentado, também, como uma questão complexa, recorrente e de difícil
enfrentamento, que vem ocupando, desde há muito tempo, um lugar estratégico na
agenda política dos países com uma longa tradição democrática como a
Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá. Nesses países, os avanços em termos
da ampliação dos direitos civis, do reconhecimento dos direitos difusos e
emergentes se fizeram acompanhar de intervenções no ordenamento jurídico e de
significativas reformas nas agências policiais. Nos últimos cinqüenta anos,
mudaram-se as doutrinas, mandatos, missões, procedimentos normativos,
tecnologias e modelos de uso da força das polícias. Tudo isso ocorreu ao mesmo tempo em que
importantes centros de pesquisa como as Universidades de Oxford e Chicago,
construíam um rico e volumoso acervo de produções científicas relacionadas ao
tema.
No caso do Brasil, só bem recentemente o
debate em torno das polícias alcançou um lugar de destaque, mobilizando a
comunidade científica, a sociedade civil e os tomadores de decisão. Durante um
bom tempo, os assuntos relativos à construção de uma segurança pública democrática
e, por sua vez, a redefinição do papel das agências policiais permaneceram,
curiosamente, à margem do processo de consolidação da democracia vivido no
país. Foi, precisamente, nesta década que a "crise da segurança"
ganhou relevância pública. A "revolta das praças", ocorrida em vários
estados, no ano de 97, contribuiu, ainda que por uma via traumática, para
emprestar uma maior visibilidade ao problema das polícias brasileiras,
evidenciando os enormes riscos a que está exposta a sustentação do estado de
direito, quando se tem uma debilidade crescente dos organismos policiais aliada
ao discreto conhecimento sobre a sua realidade.
Não sem fundamento, os estudos
contemporâneos sobre as organizações policiais identificam os processos
individuais de tomada de decisão - essencialmente discricionários e, ao mesmo
tempo, indispensáveis a qualquer ação policial - como o estado da arte das
teorias de polícia. A partir deles pode-se melhor compreender, por exemplo, as
especificidades das ferramentas de controle social difuso, os modos pelos quais
essas ferramentas pacíficas produzem obediência por meios também pacíficos e,
principalmente, as formas concretas de exercício do abstrato poder de polícia e
as prováveis razões de suas externalidades em ambientes sóciopolíticos
singulares.
Administrar, em cada ocorrência
atendida ou no curso de uma ação escolhida, a validação moral dessa ação, a
subordinação ao império da lei e as necessidades operacionais derivadas da
missão de preservar a ordem pública (eficácia, eficiência e efetividade),
constitui o principal desafio da polícia ostensiva. Isso fica mais evidente se
consideramos que o seu balcão de atendimento é capilarizado, individualizado e
ambulante, sendo concretamente exercido por cada um dos PMs que patrulham nas
ruas da nossa cidade.
A esta altura, parece oportuno
enfatizar que no mundo policial ostensivo a oportunidade de agir no agora já
das coisas, pessoas e acontecimentos requer, por excelência, a construção
individualizada e singular de termos possíveis de conciliação entre as várias
ordens do que é "prescrito" e as diversas dinâmicas informais que
conformam o "praticado". O emprego cotidiano e pervasivo do recurso
discricionário, num cenário fluido marcado pela necessidade imperiosa de
presteza e pelo caráter irredutível das contingências, exige dos agentes da lei
o famoso "jogo de cintura" expresso na aquisição on the job de habilidades diferenciadas de interpretação da
realidade. Aqui, o que parece está em questão é uma espécie de hipertrofia do
lugar social de intérprete posto para qualquer ator na administração da vida
ordinária. Em função do próprio campo de atuação ostensiva da polícia, os
processos interpretativos acionados pelos policiais encontram-se, eles mesmos,
subordinados aos caprichos das circunstâncias que estruturam os eventos. A formulação de juízos em "estado prático"
é, nesse caso, levada até as últimas conseqüências. Na condução das
ocorrências, mesmo aquelas mais banais, mostra-se necessário extrair dos
próprios fatos as chaves interpretativas através das quais eles possam ser
lidos. O saber-ato policial sintetiza esse processo da seguinte maneira:
"cada ocorrência é sempre uma ocorrência diferente". Tudo isso se volta para construir, ao nível
prático, algum grau de convergência das idiossincrasias dos episódios
"assumidos" e suas possíveis traduções, nos termos do que se
considera produtivo, adequado, satisfatório, legal e legítimo. Para o PM que
está agora ali na esquina, trata-se, portanto, de acionar a arquitetura
reflexiva do "bom senso" e identificar "o que fazer" e
"como agir" em cada situação, em cada fato particular. Talvez por conta disso, o "saber
policial de rua" se qualifique a lidar com o improviso, confundindo-se, em
boa medida, com as experiências e valores pessoais acumulados por cada policial.
Somam-se às espinhosas questões derivadas
da disciplina militar, algumas sobrevivências relativas ao período de criação e
institucionalização das polícias, que
parecem permanecer como um desafio a ser encarado nos dias de hoje. A
perspectiva militarizada das forças policiais ostensivas continua a seduzir
executivos de segurança pública e setores do senso comum ilustrado, sobretudo
quando os problemas em foco são a
"a guerra contra o crime", o “lado operacional da polícia” e o
necessário “controle dos homens armados” que fazem cumprir a lei. A despeito
das mudanças do regime político e das alterações do sistema policial
brasileiro, outros anacronismos ainda se fazem presentes pós virada do milênio,
comprometendo a indispensável profissionalização dos assuntos de polícia: a
visão de que a segurança pública corresponde a uma caçada dos inimigos da “boa
ordem e da paz pública”; a perversa associação das questões de ordem pública
com aquelas relativas à soberania do Estado; as demandas para que o Exército
atue nos assuntos de ordem pública, imprimiram a sua marca em nosso passado e
ainda têm configurado uma sombria realidade na vida democrática brasileira.