Conta
Aristóteles que seu mestre Platão ocasionalmente interrompia as aulas que
ministrava na Academia para questionar-se, e a seus alunos, se no tema
desenvolvido eles estavam partindo dos primeiros princípios ou no caminho que
se dirige a eles.
No
Brasil são poucos, mesmo nos mais sisudos centros acadêmicos, os que
efetivamente se preocupam com essa investigação preliminar de máxima
importância em qualquer campo do saber.
Nos
debates públicos ventilados na imprensa, então, nem se fala. Nesse universo marcado
pelo falatório sofístico não só inexiste preocupação com princípios, como a
própria linguagem encontra-se tão corrompida que é impossível sequer saber com
um mínimo de clareza e precisão do que se está tratando nas discussões.
E
o maior problema é que a adulteração do sentido das palavras é deliberada,
envolvendo um projeto de dominação ideológica no sentido marxista do termo, a
falsa consciência, o véu de ideias forjadas por um grupo para, ocultando a
realidade, explorar os demais com a anuência expressa ou tácita dos próprios
explorados.
Esse
grupo é a classe letrada, a intelligentsia, obcecada pelo socialismo e imbuída
do método gramsciano de reforma do senso comum para implementá-lo, como tem
denunciado e fartamente provado o filósofo Olavo de Carvalho. A depravação da
linguagem torna impossível identificar, isolar, compreender e enfrentar os
problemas postos para a coletividade. Como discutir proveitosamente sobre algo
que sequer sabemos o que é?
Mas
a difícil tarefa de remover a névoa pegajosa e traiçoeira que recobre certas
palavras e expressões vertidas incessantemente na imprensa por intelectuais e
políticos de "esquerda" (mas não apenas eles), de modo que os
interessados de boa-fé possam ao menos tentar entender com alguma nitidez o que
realmente está sendo afirmado e se as propostas de ação política reclamadas são
compatíveis ou não com os fins (ocultos ou declarados) almejados.
“Justiça
Social” é uma das mais, mais na boca de qualquer populista, mas a ‘justitia’ do
latim - que exprime conformidade com o Direito, não necessariamente o Direito
Positivo, legislado, que pode ser, e frequentemente é; injusto (exemplo da pensão
vitalícia de dez mil reais para ex-governadores), mas os princípios gerais
derivados dos valores que formam a Ética de um determinado grupo, que antecedem
e informam as leis objetivas e sua interpretação, consubstanciado no mister de
dar a cada um aquilo que é seu, como diziam os juristas romanos. E cada
indivíduo só é proprietário daquilo que produziu com o seu próprio trabalho ou
que adquiriu contratualmente por meio de trocas voluntárias.
Já
o ‘sociale’, relativo à sociedade, ou seja, uma coletividade humana. Ora, se
justiça é dar a cada um o que é seu, infere-se necessariamente que a existência
de mais de um indivíduo é sua condição sine
qua non. Não havia necessidade de justiça para o solitário Crusoe em sua
ilha deserta, antes do aparecimento do Man
Friday. Tudo lhe pertencia. Assim, toda justiça é por definição social, um
imperativo de convívio humano. O adjetivo "social" é, pois,
redundante e dispensável.
O
mesmo obviamente ocorre com outras expressões, tais como "movimento
social", "política social", "investimento social",
"questão social", "direitos sociais", "democracia
social" e muitas outras, um cúmulo do estelionato semântico demagógico.
Até o erudito e em geral lúcido J. G. Merquior embarcou nessa canoa furada com
o seu "liberalismo social". O economista e filósofo Friedrich Hayek,
em seu clássico Law, Legislation and Liberty, deu-se ao trabalho de enumerar
dezenas de termos adjetivados com o infalível "social", que nada
acrescentava de racional e esclarecedor aos respectivos substantivos.
Se
o "social" nada significa de relevante, porque é tão usado? Porque o
sentido oculto dessa palavra é "socialismo", ou seja, a intervenção
coletiva, política, estatal, na esfera de autonomia individual, mesmo e
sobretudo aquela em que as pessoas não estão tomando dos outros o que não lhes
pertence.
Em
outras palavras, "social", nesse contexto, consiste em ações coercitivas
por meios das quais aqueles que detêm o Poder Político ordenam os
comportamentos e dispõem do patrimônio dos indivíduos da forma que bem
entendem, dando a cada um o que, segundo critérios inteiramente arbitrários,
entendem que cada um merece.
Vê-se
que o "social" é mais do que tautológico em relação à justiça. É
incompatível com ela. "Justiça social" é pura e simplesmente
injustiça. E quem aceita esse conceito distorcido e contraditório como premissa
para o debate, mesmo que não seja socialista, já admitiu a viabilidade prática
e conferiu validade moral ao socialismo.
Acontece
que a incessante ladainha dos intelectuais de "esquerda" é justamente
atribuir ainda mais poder e mais dinheiro a essa causa insaciável imarcescível
que é essa visão enodoada de uma utopia em causa própria!