segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Entrando para a história do melhor jeito possível


Existem muitas formas de se entrar para a História, mas poucas são agradáveis. Elas geralmente envolvem suicídios, chacinas, manipulações e alinhamentos com políticas neoliberais.
Vejam o caso do pequeno Vlad Tepes. Tepeszinho poderia ter passado a sua infância jogando pebolim e bafo com seus amiguinhos. Sim, certamente. Mas não. Ele acabou empalando turcos.
Foi por ter escolhido este caminho que pôde entrar para a História. De fato, como esquecer o pobre Varguinhas? Varguinhas deu a vida para ter seu nome nos livretos infantis. Óbvio. Ninguém gosta de ler sobre pessoas que estão vivas ainda, ou que morreram tranqüilamente.
Por exemplo, eu nunca ouvi falar de João Cabral de Melo Neto na escola antes de 1999, quando ele morreu. Está certo que naquele ano eu me encontrava alheio ao Brasil mas nada justifica a omissão deste que é um dos maiores poetas da língua portuguesa.
Ljubisav Đokić é, portanto, um sujeito de sorte. Este santo homem entrou para a História da maneira mais sagaz possível: invadindo a central da televisão sérvia com uma escavadeira.
e não é preciso peito para invadir a RTA, em pleno governo Milosevic, com uma escavadeira, eu não sei para que é preciso. Metaforicamente falando, óbvio, porque é preciso ter insanidade.
Mais do que participar desta revolução que foi carinhosamente apelidada de Bulldozer Revolution (Revolução da Escavadeira), Ljubisav ainda teve as bolas de aço necessárias para criticar o governo democraticamente eleito após a queda de Slobodan. O sujeito derruba um regime e fica malhando o outro em sua situação de... Desempregado com deformidade física! Taí um homem que vai lá e faz, diferente desses do Cansei.
Esta é a maneira mais descolada de se entrar para a História, e tenho dito. A imprensa ocidental deu tanta importância ao revolucionário que, achando seu nome muito difícil para ser divulgado, deu-lhe um carinhoso e muito provável apelido: Joe.
O que teria acontecido se uma das balas do governo (e havia muitas) o tivesse atingido? Viraria um mártir? Ou sumiria nas águas do fosso do tempo? Vale a pena pensar...
Se quiserem, aliás, ler das palavras deste rapaz de sucesso, divirtam-se aqui. Deveras interessante.

Me despeço do blog por alguns dias, vou fazer algumas profundas correções plásticas na carcaça deste pobre porsche, quando voltar vou ser o velho turco novamente, com a cimitarra na cintura como meus antepassados otomanos, esperando Tepezinho voltar.

Muitas saudades, mas não esquenta não, não vou morrer, só ressucitar o porsche e quando voltar posto uma foto do novo cara que o cirurgião plástico me prometeu.

domingo, 5 de setembro de 2010

Dalai 3


O cinza da manhã era esperado, mas não tanto assim. No espelho à minha frente eu ainda podia identificar uma noite com mais ansiedade que sono. A tensão voltava a tomar conta de mim quando percebi os dois olhos impacientes por trás de minha imagem refletida. A loja estava cheia e o vendedor não tinha muita tempo para aguardar minha terceira ou quarta prova de óculos para neve. Percebendo a irritação, decidi pelo último, mesmo sem ter muita certeza disso. Paguei, recebi um sorriso automático com o troco e deixei o local enquanto ouvia alguém perguntar se havia ou não um modelo de bolsa com alças ou algo assim. A porta bateu atrás de mim quando olhei o relógio da rua. Era 10h03 em uma travessa próxima a Leicester Square, Londres, minha primeira parada na Europa, rumo ao Tibet.
O roteiro era esse: São Paulo, Londres por dois dias e aí, a China: Pequim - cinco dias, Xian - um, Chengdu - mais um e, finalmente, Lhasa. A viagem até a Inglaterra havia sido tão tranqüila quanto uma noite poderia ser nos últimos meses. Uma vez mais quase não dormi. Mais de uma vez, tive pesadelos nos breves cochilos. Em um deles - praxe em viagens, embora inédito no meu caso, vivia um desastre aéreo. Na verdade, o que menos me assustou. A sensação de morte imediata não me apavorava, ao contrário, fazia com que ficasse tranqüilo. Duas poltronas à frente, no corredor ao lado, uma senhora parecia rezar o décimo terço da noite. Atrás dela e quase ao meu lado um jovem reclamava baixo com seu fone de ouvido. Dentro de mim, dúvidas saltavam. Mais do que a saudade ou o conforto com a idéia da morte em meu pesadelo, o que me angustiava era saber que, em breve, estaria a cerca de 44 horas de casa, percorrendo uma estrada proibida sem saber bem o porquê daquilo tudo. Não tinha respostas às perguntas que ela não havia me feito. Por que viajar sozinho? Por que o Tibet? Quais fossem as justificativas, não estava pronto para elas. A iluminação baixou na chegada a Gatwick.
O aeroporto impecavelmente cuidado me fazia lembrar que Londres seria meu último contato com o ocidente em toda a viagem. Por ocidente leiam-se compras, idioma, comida palatável, feições conhecidas, contato com produtos imprescindivelmente supérfluos. No ônibus em direção à cidade peguei pela primeira vez o caderno com as anotações que havia feito sobre o Tibet. População da capital: 160 mil chineses, 100 mil tibetanos. Idioma: o mandarim aparece em maior destaque nas placas comerciais ou de sinalização que o tibetano. Religião: o governo chinês desestimula.
Uma luz me cegou por um instante. O reflexo de um improvável sol no relógio de Leicester Square atingiu meus olhos e lembrei-me dos óculos para a claridade da neve embalados na sacola que carregava. São 10h28 e estou parado há quase meia hora na frente de um dos inúmeros cinemas da região. Sorrindo com o lugar-comum, quase desconcertado, vejo que o filme passara dentro de mim.
O melhor é ir para o hotel. Amanhã à noite, a China me espera. Talvez mais do que eu a ela.
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