domingo, 5 de setembro de 2010

Dalai 3


O cinza da manhã era esperado, mas não tanto assim. No espelho à minha frente eu ainda podia identificar uma noite com mais ansiedade que sono. A tensão voltava a tomar conta de mim quando percebi os dois olhos impacientes por trás de minha imagem refletida. A loja estava cheia e o vendedor não tinha muita tempo para aguardar minha terceira ou quarta prova de óculos para neve. Percebendo a irritação, decidi pelo último, mesmo sem ter muita certeza disso. Paguei, recebi um sorriso automático com o troco e deixei o local enquanto ouvia alguém perguntar se havia ou não um modelo de bolsa com alças ou algo assim. A porta bateu atrás de mim quando olhei o relógio da rua. Era 10h03 em uma travessa próxima a Leicester Square, Londres, minha primeira parada na Europa, rumo ao Tibet.
O roteiro era esse: São Paulo, Londres por dois dias e aí, a China: Pequim - cinco dias, Xian - um, Chengdu - mais um e, finalmente, Lhasa. A viagem até a Inglaterra havia sido tão tranqüila quanto uma noite poderia ser nos últimos meses. Uma vez mais quase não dormi. Mais de uma vez, tive pesadelos nos breves cochilos. Em um deles - praxe em viagens, embora inédito no meu caso, vivia um desastre aéreo. Na verdade, o que menos me assustou. A sensação de morte imediata não me apavorava, ao contrário, fazia com que ficasse tranqüilo. Duas poltronas à frente, no corredor ao lado, uma senhora parecia rezar o décimo terço da noite. Atrás dela e quase ao meu lado um jovem reclamava baixo com seu fone de ouvido. Dentro de mim, dúvidas saltavam. Mais do que a saudade ou o conforto com a idéia da morte em meu pesadelo, o que me angustiava era saber que, em breve, estaria a cerca de 44 horas de casa, percorrendo uma estrada proibida sem saber bem o porquê daquilo tudo. Não tinha respostas às perguntas que ela não havia me feito. Por que viajar sozinho? Por que o Tibet? Quais fossem as justificativas, não estava pronto para elas. A iluminação baixou na chegada a Gatwick.
O aeroporto impecavelmente cuidado me fazia lembrar que Londres seria meu último contato com o ocidente em toda a viagem. Por ocidente leiam-se compras, idioma, comida palatável, feições conhecidas, contato com produtos imprescindivelmente supérfluos. No ônibus em direção à cidade peguei pela primeira vez o caderno com as anotações que havia feito sobre o Tibet. População da capital: 160 mil chineses, 100 mil tibetanos. Idioma: o mandarim aparece em maior destaque nas placas comerciais ou de sinalização que o tibetano. Religião: o governo chinês desestimula.
Uma luz me cegou por um instante. O reflexo de um improvável sol no relógio de Leicester Square atingiu meus olhos e lembrei-me dos óculos para a claridade da neve embalados na sacola que carregava. São 10h28 e estou parado há quase meia hora na frente de um dos inúmeros cinemas da região. Sorrindo com o lugar-comum, quase desconcertado, vejo que o filme passara dentro de mim.
O melhor é ir para o hotel. Amanhã à noite, a China me espera. Talvez mais do que eu a ela.

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