quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Vinho doce, crítica ácida...


Os primeiros goles de vinho entraram na boca de Jonathan Nossiter como remédio. Ele tinha apenas 2 anos de idade quando seus pais instilaram pequenas doses na dieta dos quatro filhos para mantê-los mais comportados. Era uma família americana em Paris – e adepta do costume francês de beber às refeições. Seduzido pelo encanto dos tintos e brancos, Nossiter começou a montar uma adega na adolescência. Uma década mais tarde, o vinho passaria a ser seu ganha-pão.
Hoje, aos 48 anos, Nossiter mora no Rio de Janeiro (ele se naturalizou brasileiro no início deste ano), onde tenta conciliar duas carreiras: sommelier e cineasta. Suas cartas de vinhos estão em restaurantes no mundo todo. Seu documentário Mondovino, de 2004, concorreu à Palma de Ouro em Cannes e rendeu uma série para a TV já exibida em 20 países.
Nesta semana, Nossiter abraça uma terceira carreira: escritor. Ele lança no Brasil o livro Gosto E Poder – Vinho, Cinema E A Busca Dos Prazeres (Companhia das Letras, 298 páginas, R$ 49, tradução de Hildegard Feist). A obra retoma – e leva adiante – pontos centrais apresentados em Mondovino. Suas teses: 1) as forças do mercado – críticos, donos de restaurante e importadores – definem as características que levam ao sucesso de um certo tipo de vinho; 2) isso favorece os grandes produtores que aderem a esse gosto médio e destrói os sabores regionais característicos; e 3) o gosto acaba sendo ditado por quem tem poder.
Como seu controvertido filme, o livro provocou reações desde que foi lançado na França. O influente crítico americano Robert Parker – um dos nomes que Nossiter considera responsáveis pela tendência mundial de produzir vinhos cada vez mais encorpados, alcoólicos, com sabor de carvalho e doces como xarope – acusou o autor de “estúpido” e “intolerante”. Parker é um dos alvos preferidos de Nossiter, ao lado do enólogo francês Michel Rolland (um projetista de vinhos que, no Brasil, prestou consultoria à vinícola Miolo) e da jornalista britânica Jancis Robinson (autora do Atlas mundial do vinho). Ao trio de antigos desafetos, soma-se no livro o espanhol Victor de la Serna, editor do jornal El Mundo e também vinicultor. “Ele é um tubarão, totalmente antiético, usa o jornal para promover seus vinhos e sua região”, diz Nossiter.
Dependendo de como se lê Gosto e poder, parece haver uma guerra no reino das uvas. Nossiter está no front ao lado de pequenos vinicultores da Borgonha e de algumas regiões italianas, os poucos que, segundo ele, ainda não venderam a alma e mantêm em suas garrafas o gosto tradicional do vinho ligado à terra – conhecido pela expressão francesa terroir –, em vez de se sujeitar ao sabor médio globalizado. O terroir, terreno cujas características de solo, clima e plantas definem a identidade do vinho, é para ele um patrimônio da humanidade. A indústria e o marketing, os inimigos a combater.
Seu livro tem o mérito de nos fazer refletir sobre a corrupção no mercado de vinho, sobre os critérios artificiais que interferem na formação do preço de cada garrafa, sobre a formação de um gosto padronizado em todo o mundo e sobre o esnobismo ridículo do “enologuês” usado por quem se diz conhecedor de vinho. Depois de ver no cardápio do L’Atelier Rebouchon, em Paris, uma garrafa de um jovem vinho espanhol a 803 euros, Nossiter escreve: “O consumo do vinho, alçado ao pedestal do luxo, despojado de qualquer relação com prazer e descoberta, torna-se uma descarada expressão da intimidação psicomercantil que chega perto do roubo”. Nem é preciso ter bebido para concordar.
Vale a pena conferir.

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