sábado, 7 de agosto de 2010

atras do pano


Confesso que hoje o prazeroso ato da escrita para mim se torna difícil, não só pela noite de vigília intensa, ou pelas imagens dos rostos chorosos e impotentes que vi a noite inteira; de médicos sem solução a parentes com algum fio de esperança.
Cheguei ao hospital as 23:13, um telefonema lúcido de uma irmã de meu amigo me disse para ir as pressas pois o que todos sabiam o que ia acontecer muito em breve, mas protelavam de todas as formas morais e emocionais, estava prestes a ocorrer.
Embora já não ouvíssemos mais a voz grave de nosso amigo há quase um mês, pois o excesso de dopamina na UTI o tinha deixado sedado para que as dores de não poder mais respirar a contento não fossem insuportáveis. Sabíamos naquele instinto básico de cristão ocidental que ele estava lá. Mesmo que alguns já o considerassem desencarnado. Mas os mais próximos que o conheciam e de alguma maneira particular amavam aquele sujeito de intelecto soberbo mas de gênio terrível, tinham esperanças, afinal a última que morre é ela.
Enfim, após 24 dias de clima tenso, de sofrimento diário, de dor de ver uma mãe em decadência física e emocional e um pai que não demonstra sentimentos pela sua natureza sisuda, mas percebia-se que chorava por dentro. Dois médicos chamaram a mim que sou advogado da família por mais de 20 anos e a irmã mais velha, que encontrou forças não se sabe de onde para manter-se ereta diante de tudo; para um canto do longo corredor do hospital do câncer.
As duras palavras foram recebidas como um coice de algum animal mais forte que qualquer outro que se tenha ouvido falar. Após sucessivas tentativas de reanimação, uma parada cardiorrespiratória, levou para sempre um guerreiro que amava o pensamento e tudo que advinha dele e deplorava a mediocridade.
A pessoa mais inteligente que conheci, que embora parecesse às vezes um moleque maluco, imitando pássaros, cantando La Bohémme em falsete, ou recitando Moliére na sua língua nativa. Era um monstro sagrado na arte de dizer o que pensava e com opiniões sempre ácidas, deixou admiradores e desafetos aos montes.
Estudou tanto que a vida lhe negou continuidade, embora fossemos amigos de longa data, em algumas vezes no tempo ele se dissolvia e sumia, não dava a mínima a telefonemas para dizer onde estava e aonde ia ou como andava. Um belo dia ligava para algum parente e dava notícias: “_Estou bem, tou morando em Hamburgo”. E outras mais que sempre aprontava.
Casava, tinha filhos e nem fazíamos idéia disso a não ser quando ele chegava de madrugada do aeroporto com um rebento no colo e dizia para sua mãe: “Este aqui é seu neto!”
Já vi muitos amigos partirem, vi os que foram de forma rápida e súbita, vi os que simplesmente morreram e esta madrugada, vi alguém que não queria morrer. É algo contraditório, afinal ele fumou todos os cigarros que viu na vida. E por mais incrível que pareça, embora eu odeie cigarros, e agora mais ainda. Eu adorava esse sujeito. Mesmo quando ele me telefonava de madrugada e dizia: “Weimar, tou na terra, vem tomar uma comigo!” E lá ia eu sabendo que isso era um indício de que ele estava em algum bar, bebendo sozinho (coisa que ele passou a detestar, anos depois) e querendo conversar.
Lá ia eu, colocava uma camisa de algodão, pois sabia que ia ficar impregnado de tabaco e ia escutar meu amigo reclamar do quanto as pessoas não compreendem a vida. Imaginava um dia que a cabeça dele iria se abrir, como naqueles desenhos animados, e de dentro dele ia sair algum ser de outro mundo e dizer: ”Vou voltar pra casa!”
Hoje o dia está mais triste, o dia dos pais em Val de Cães vai ser como um dia qualquer, sem som, sem luz, sem cores, apenas uma paleta de borrões e matizes apagadas pela sexta feira negra que embota este fim de semana.

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